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Foto do escritorespaco horizonte

“Um castelo, um vinho e a herança do papado na França”




– Atualmente temos um castelo em ruínas, construído no século XIV sob o Papado de João XXII dominando a colina, com a visão a oeste do Rio Rhône, que vai deslizando pela paisagem. Entretanto, apesar de restar apenas a parede sul do castelo, a visão deste cenário é algo de tirar o fôlego.


Estamos visitando a região de Chateauneuf-du-Pape, num Roteiro de Vinhos e Gastronomia cuidadosamente preparado por Mariella e German da Zenithe Travelclub (https://www.instagram.com/zenithe.travelclub/ ), depois de uma peregrinação de uma semana pela Provence. A denominação é talvez a mais conhecida quando falamos do Rhône, e um dos vinhos mais populares do mundo do vinho.


Aqui em Chateauneuf o vinho significa um senso de lugar e história. A mudança do Papado de Roma para a cidade fortificada francesa de Avignon se deu por conta da divisão que surgiu com as pressões e ofensas mútuas entre coroa francesa sob Felipe IV, o Belo (que condenava o papa Bonifácio VIII por heresia e sodomia) e o Papado (que condenava a política de cobrança de impostos promovida pela França, além de ter créditos a receber do monarca).







As desavenças culminaram com um cerco ao Papa Bonifácio VIII na cidade de Anagni (Itália), que desafiou as tropas francesas a matá-lo. Mas os franceses voltaram atrás e acabaram sendo expulsos da cidade. Entretanto o Papa Bonifácio VIII morreu cerca de um mês depois e a tensão entre os dois poderes continuou, culminando com a eleição (ou melhor dizendo a indicação pelo Rei da França), em 1305, do arcebispo de Bordeaux, Bertrand de Got, como Papa Clemente V (1305-1314), que decidiu transferir o papado para Avignon. De família abastada, ele possuía em Pessac (Bordeaux) o castelo que hoje leva seu nome (Château Pape Clément). A primeira vinha papal foi plantada por ele em Malaucène.


Seu mandato se caracterizou pelo nepotismo (nomeou cinco membros de sua família como cardeais) e pelo gosto pelas cruzadas, que só não foram adiante devido à guerra entre França e Inglaterra, à caótica política italiana e à peste negra que assolou a Europa. O século XIV foi marcado ainda pela crescente desvinculação do poder do Estado do poder eclesiástico, que acabou gerando mútuas trocas de insultos, ameaças e punições.


Seu sucessor João XXII (1316-1334) foi um ex-bispo de Avignon chamado Jacques Duèse. Ele foi o responsável pela transformação do Palácio Episcopal de Avignon em Palácio Pontifício, após importantes obras de reforma. Embora nascido em Cahors (zona famosa pelos seus vinhos), João XXII tinha predileção pelos vinhos de Hermitage, Costières, Roquemaure e Valréas. Esta última vinha foi então comprada por ele em 1317 e posteriormente desenvolvida, produzindo vinhos excepcionais. Ele também plantou outros vinhedos, o mais famoso deles é o Châteauneuf. Foi fácil entender por que o Papa João escolheu este local com sua visão de 360 graus da vila e dos vinhedos abaixo, a apenas 30 quilômetros de Avignon. Chateauneuf funcionava como um castelo de retiro e descanso, porque o papa continuava vivendo e despachando a partir do castelo papal de Avignon.


Os papas de Avignon realmente gostaram do vinho produzido na área e plantaram novos vinhedos nas terras mais férteis ao norte. O Papa João XXII tem o crédito de fazer muito para melhorar a viticultura na região como um todo. O vinho recebeu o nome de “vin du papes” (vinho dos papas) e foi amplamente divulgado. Se não fosse pelo Papado em Avignon, o vinho de Chateauneuf du Pape certamente não teria sido tão conhecido!


O Papa João XXII morreu apenas um ano após a conclusão do castelo, de maneira que ele nunca passou muito tempo lá. Nenhum dos papas subsequentes chegou a viver no castelo também, já que havia o outro castelo papal em Avignon. O Papa Gregório XI (1370-1378), resolveu voltar a Roma. Mas os problemas voltaram com o papa seguinte, Urbano VI, que, logo depois de eleito, foi declarado paranóico e repudiado pelos cardeais, que elegeram Clemente VII, que, por sua vez, se transferiu com a cúria novamente para Avignon.


Urbano não aceitou a deposição e foi apoiado por Santa Catarina de Siena. Clemente teve apoio de São Vicente Ferrar. A cristandade foi dividida em duas e assim permaneceu por 39 anos. Em 1409, desiludidos com ambas as lideranças, os cardeais convocaram novo concílio, em Pisa (Itália), e depuseram o papa romano Gregório XII e Benedito XIII, de Avignon, e elegeram Alexandre V. Nenhum dos dois, porém, aceitou a deposição, e a igreja passou a ter três papas ao mesmo tempo!


Em 1415, o concílio de Constance entrou em consenso e elegeu novamente um único papa, romano, Martinho V, depois de depor ou forçar a abdicação dos papas anteriores.







Ao longo do Papado em Avignon, houveram 7 papas franceses e mais 3 que foram declarados anti-papas, por não serem reconhecidos pelo Vaticano em Roma. Por fim, com o Papado retornando para Roma, o castelo foi passado para o Bispo de Avignon, mas era muito caro para ser mantido. Com o tempo, houve um desmonte do castelo para com a pedra extraída construir-se outras edificações na região, restando atualmente, apenas algumas ruínas.


O vinho do Châteauneuf du Pape ganhou reputação como um vinho de qualidade na França e foi elogiado em toda a Europa. No entanto, na década de 1860, uma nova doença da videira começou a ser notada no sul da França. A filoxera, rapidamente chegou ao Vale do Rhône e sendo uma doença nova para a maior parte do mundo não havia certeza de como combatê-la. A doença estava se espalhando rapidamente pela França, deixando para trás muitas vinhas mortas. Durante a década de 1870, a produção de vinha na região caiu drasticamente de 89,5 milhões de hectolitros em 1870 para 23,4 milhões de hectolitros em 1879. Felizmente, os especialistas descobriram que usando-se porta-enxertos de videira americana, a novas videiras ficavam mais resistentes à filoxera e deu-se o replantio dos vinhedos desta maneira.


Percebe-se que beber um vinho do Chateauneuf du Pape é como beber um pouco da história, até porque Chateauneuf tornou-se uma das primeiros AOCs ou denominação de origem controlada na França em 1936. Isso significa que cada etapa da produção de vinho deve seguir padrões rígidos. Isso é o mesmo para todas as denominações na França.


O que torna os vinhos Chateauneuf únicos são as treze variedades de uvas que podem ser misturadas ao vinho. Grenache é a variedade mais cultivada e predominante na mistura, a espinha dorsal dos vinhos Chateauneuf. Ele empresta ao vinho notas de cereja escura, amoras e especiarias. Diz-se que os vinhos Chateauneuf podem ser bebidos jovens, mas são muito mais acessíveis com um pouco de idade. Os vinhos produzidos têm a particularidade de terem o teor alcoólico mínimo permitido de 12,5% embora, na prática, sejam geralmente de 14% ou mais.


Outras uvas importantes em Chateauneuf du Pape são: Syrah, Mourvedré, Cinsault, Clairette, Vaccarése, Bourboulenc, Roussanne, Counoise, Muscardin, Picpoul, Picardin, Terret noir. A Grenache Blanc não é considerada separadamente da Grenache Noir.


Embora existam vinhos tintos e brancos na denominação, 94% do vinho produzido é o vinho tinto complexo e encorpado. Com notas de amoras, morangos, groselhas negras, kirsch, cerejas pretas e vermelhas, as texturas são deliciosas quando jovens e como a marca de muitos vinhos finos, só melhoram com o tempo. O frescor e o tempero de um Chateauneuf-du-Pape tinto combinam muito bem com pratos de carne vermelha grelhada, pato, cordeiro, ensopados e pratos com carnes de caça.


Os brancos tendem a ser significativamente vinhos para serem bebidos na sua juventude. A maioria deve ser bebida dentro de quatro a cinco anos, embora alguns como o Chateau de Nalys, por sua passagem em barricas, possam envelhecer por muito mais tempo. Grenache Blanc, Counoise, Vaccarese criam um vinho fresco, que possui notas florais e frutadas com um teor alcoólico de cerca de 14%. Excelentes combinações gastronômicas incluem frango, vários queijos duros e macios e praticamente todos os tipos de frutos do mar, desde mariscos como lagosta e camarão, até mesmo a cozinha asiática e japonesa, como um sushi.

O clima da região é tipicamente mediterrânico, muito seco, graças ao vento mistral. A agricultura biodinâmica é muito mais facilmente realizada aqui, pois as pragas simplesmente não prosperam neste ambiente. Existem muitos tipos diferentes de solo, de argila a areia e os galets (seixos rolados) - grandes seixos redondos que ajudam a manter o calor no solo e auxiliam na drenagem. Outra característica deste AOC: toda a colheita é feita à mão. E outro detalhe importante: as garrafas do vinho Chateauneuf-du-Pape tem gravado em alto relevo a mitra papal, sendo facilmente distinguíveis junto aos outros vinhos do Rhône.


Podemos dizer que os papas de Avignon contribuíram muito para a criação, desenvolvimento e promoção de vários vinhos, muitos dos quais são provençais, incluindo os vinhos brancos de Cassis e Marignane, os vinhos brancos e tintos de Cagnes, Roquevaire, Aubagne, Cucuron e Manosque (Pierrevert); bem como os vinhos tintos de Gémenos, Orgon, Barbentane, Aix-en-Provence e La Crau. Este último, é apontado como o vinho mais alcoólico da Provence.






Mas nem todo vinho do Papa tem a qualidade do vinho francês! No início do século XX, o vinho tônico Mariani, à base de vinho de Bordeaux e folhas de coca, era muito popular. Seu inventor, Angelo Mariani, era um ás da publicidade e conseguiu convencer os Papas Leão XIII e Pio X a anunciarem sua bebida pessoalmente. Leão XIII até lhe concedeu a Medalha de Ouro do Vaticano. O vinho tônico Mariani é o ancestral da Coca-Cola, mas isso é outra história...


Se você ainda não conhece o Chateauneuf-du-Pape, está mais que na hora de prová-lo!


Saúde!!!


Aproveite para comentar se gostou ou não!!! (Este artigo está baseado em material disponível na internet, e minhas considerações durante a prova dos vinhos




Matéria de Márcio Oliveira para o Jornal Horizonte


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